O regresso do imã oculto
23.03.2007, José Miguel Júdice
O "não-regresso" de Paulo Portas era elemento essencial do personagem
Oque se passou no passado fim-de-semana no CDS, apesar de já analisado com detalhe (realço o editorial de José Manuel Fernandes, na passada terça-feira, que corresponde rigorosamente ao que penso), merece, em minha opinião, ser objecto de outras reflexões. É o que vou passar a tentar fazer.Antes do mais para realçar o erro estratégico de Paulo Portas. O tacticismo jornalístico, de que nunca se conseguiu libertar, fê-lo saltar cedo de mais para a arena. Há vários meses chamei-lhe "imã oculto", usando o exemplo da religião xiita para ilustrar o seu dilema. Para mim era evidente que o "povo do CDS" ansiava por Portas. Mas o seu "não-regresso" era elemento essencial do personagem. No dia em que chegasse, numa manhã de nevoeiro ou não, parte do fascínio esfumar-se-ia e cedo ou tarde se descobriria que não tem as condições para a sua ambição.Mas ele podia não conseguir resistir à tentação de se historicizar. Seria, sem dúvida, um pecado. Ainda que bem típico dos humanos e traço agradável da sua personalidade. Só que então deveria ser capaz de esperar pelo esgotamento do ciclo Ribeiro e Castro. E para isso deveria ter controlado as suas tropas. É sabido que a qualidade dos chefes militares se mede muito mais pela capacidade de conseguir fazer os exércitos aguardar do que pelo "heroísmo" de os lançar à desfilada contra canhões. Em vez de liderar, deixou-se comandar, anteviu uma crise imediata no PSD (o que é menosprezar Marques Mendes...), temeu quiçá que um dos seus dilectos apoiantes saltasse sozinho, avançou com todo o apanágio de uma operação de marketing político, conseguiu despertar entusiasmo nas hostes, percebeu que ganharia, mas foi traído por aquilo que faz dele um notável jornalista, um forte agitador, mas um sofrível político e um fraco governante: a precipitação, a reacção demasiado pronta, o excesso, a convicção de ser iluminado, a arrogância, o gosto da boutade e do calembour, a auto-suficiência, a alma adolescente.O que se viu em Óbidos foi uma vergonha e deixou todos feridos, sabe-se lá se de morte. Paulo Portas já dificilmente resistia às declarações televisivas que fez sobre a hipótese de um dia ter a loucura de aceitar ser ministro. Tinha a credibilidade afectada pela insólita opção de, mudando apenas de roupa, passar de director do Canard Enchaîné a ministro da Defesa. Creio que não resistirá à projecção da imagem do engravatado homem de Estado com fato às riscas e com o tal lencinho no bolsinho do casaco a anunciar que desceu à terra para salvar o CDS, a direita e o país, em simultâneo com a imagem do adolescente de camisa aberta pelo peito abaixo a capitanear um bando de "condottieri" que - se fossem mais bonitos - pareceriam saídos da cena da entrada no baile no Leopardo, o inesquecível filme de Visconti.Mas, pelo outro lado, também o grupo oposto sai muito ferido desta cena de ajuste de contas que Scorsese gostaria de ter filmado. As coisas são o que são. Apesar das suas qualidades humanas, existe no CDS a sensação de que Ribeiro e Castro nunca conseguirá ganhar coisa nenhuma e que é uma carta descartável no baralho da política à portuguesa. Por mais argumentos jurídicos que possa esgrimir (e não duvido que são fortes), o certo é que uma clara maioria do principal órgão político do CDS não o quer a liderar o partido. Porque até o CDS se está nas tintas para princípios, valores e ideias, apenas salivando por tachitos e sinecuras governamentais.E o que se viu nas televisões (e que permite imaginar o que se não viu) demonstra que não há conciliação possível entre os dois bandos em que se dividiu o partido exíguo (para usar uma frase querida a Adriano Moreira) que já era o CDS. Maria José Nogueira Pinto - com o franc parler que é a sua imagem de marca - já o disse: se Portas ganhar, sai do CDS. E Portas deve dizer o mesmo, se tiver a coragem de estar à altura da sua ambição, para a situação oposta. Eu sei, claro, que se costuma dizer que o mundo se divide entre amigos, inimigos e membros do mesmo partido. Mas essa frase quer significar que os membros do mesmo partido estão a meio caminho entre os amigos e os inimigos; não pode significar que os membros do mesmo partido sejam mais inimigos dos que os piores inimigos.O que me provoca uma segunda reflexão. Esta trapalhada do CDS, espécie de happening que junta drama e comédia, é quase inevitável quando se confrontam políticos nos nossos partidos, onde não germina uma ideia, não floresce uma estratégia, não se pode colher uma visão do país. Mais cedo ou mais tarde vai acontecer o mesmo ao PSD. E no PS, quando Sócrates deixar de mandar com mão de ferro, iremos por certo a assistir a coisas semelhantes.O folhetim da Universidade Independente é, ao pé disto, uma história para crianças. E isso é que devia fazer pensar a nossa classe política e os que se preocupam com Portugal. Os partidos estão a dar cabo do regime democrático e não temos nada preparado para os substituir. Quase apetece pedir que, para evitar que entrem em liquidação, façam o que habitualmente devem fazer as empresas em dificuldades - entregar a gestão a um gestor externo que ponha ordem na casa, para que a seguir os accionistas possam voltar a receber a empresa em condições de sobreviver. A menos que queiram que o Estado tenha de os nacionalizar.Um terceira reflexão, a despropósito talvez. O défice do Estado foi em 2006 de 3,9 por cento, em vez dos 4,7 por cento que a União Europeia aceitava. Nenhum dos partidos da oposição deve ter reparado, entretidos que andam a olhar para o umbigo. Mas os portugueses agradecem, sobretudo os que com o seu esforço e perda ou redução de direitos contribuíram para este resultado.
Advogado
DDC